sexta-feira, 23 de julho de 2021

Bão Demais da Conta - pequeno vocabulário de mineirês

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terça-feira, 19 de março de 2019

Livro A Casa das Lembranças (TRECHOS) Carlos Vieira Charles




I - AS CIDADES PREFERIDAS (IMPRESSÕES DE VIAGEM)









MARCO ZERO





“(...) deixar o escritório e andar pelo mundo com um coração de homem”

Carl G. Jung (adaptado)



Viajor, viajante, viandante, já dormi em casa de índio

Comi arroz, peixe em água e sal, e tracajá assado no almoço, às sete da manhã

No sertão agreste, com as mãos comi farinha com rapadura na cuia

Fui em muita festa de roça, funções de religiosidade simples e verdadeira

Casamentos, folias de reis, empoeiradas e humildes festas de santos



Andei na imensa Belém-Brasília



Pernoitei em casa de pescador de praia ainda inóspita

Dormi com aranhas negras me olhando do teto

Tomei banho de balde

Tomei água de chuva e de cachoeira



Tive de beber água salobre e passei três meses esperando uma hepatite que não veio

Pesquei piranha preta no Araguaia, vi fazendas com bate-paus e trabalho escravo

Acampei perto de jacarés - olhos vermelhos ao foco das lanternas



Corri o Amazonas, majestoso

Fui às estranja, velha Europa

Aos EUA, recusei-me, não quis ver o império



Subi a Machu Picchu; estive perto do Pico da Bandeira, sob total neblina

Já fiquei em pousadas rústicas e hotéis de luxo

Vi o faustoso tédio dos ricos e a dor dos pobres

Passei dias comendo arroz puro, peixe e tomates verdes

Em um paraíso perdido sem asfalto nem luz elétrica

Para mim, como diz o cantor poeta

Qualquer lugar debaixo do céu e em cima do chão, está bom

Também pisei em Windsor, Montecarlo, Roma, Paris, Versailles, o mundo dos ricos

Andei quieto em meio a gente de todas as classes e tipos

Trabalhadores, peões, índios, pescadores, gente humilde,

criancinhas com barriga d’água,

Também passei por urbanos loucos, garotões drogados, torcedores vikings,

Damas da noite, assassinos motorizados, religiosos fanáticos

E oportunistas, ególatras, carreiristas, corruptos, pilantras pelintras, estelionatários

bem ou mal-vestidos – escória!



Já fui bastante em casas de ricos, imensas e vazias

(Engraçado, ao invés de unir, o dinheiro afasta as pessoas umas das outras)

Certa vez em um hotel, vi, sem saber e por puro acaso, uma festa de bandidos velhos e decadentes

Risos, esgares, caviar, canapés, cocaína, uísque de doze anos, banda musical,

helicópteros, guarda-costas e prostitutas



Por vezes, senti fome, senti frio, senti medo

Andei de carro velho em estrada de cascalho no alto da cordilheira dos Andes

Outra vez, um ônibus perdeu os freios na caatinga; parou tombado no barranco

Doutra vez, num forró de praia, um pescador embriagado, incomodado com a presença

nem sempre agradável

Dos turistas, riscou a parede com um facão, a centímetros de minhas costas

Viajei de jangada, ferry-boat, veleiro, velhas barcaças a motor, cheirando a óleo

Andei no luxo e no lixo, tédio e miséria

Vi moça bonita de tudo o que é cor e toda condição social

Em tudo o que é canto ou lugar: a beleza, ao menos ela, é socialista

Como a inteligência, que existe em todas as classes, é democrática



Mas viajor, viajei e, se pudesse,

Ainda estaria a fazê-lo

Viajante, viandante

(Mais um cavaleiro errante?)

Um pequeno cidadão do mundo

No mundo físico das estradas

Muitos km bem rodados

Vendo a vida real, crua e palpável

Sem mídia, sem publicidade e sem política







I- PATOS DE MINAS



Aos conterrâneos







Minha cidade natal, pequena

Cada esquina suscita uma lembrança

e um afeto

A infância, a juventude feliz de músicas,

musas e noitadas

Não era a época, nós é que éramos bonitos e cheios de vida:

- hormônios fervilhando!

O frescor desses verdes anos, deem-me um

pouco mais!

Uma máquina de viajar no tempo

Uma pequena regressão à alegria em

estado bruto

Pura, clara e cristalina

Me deem um pouquinho mais do gosto

Da inocência ingênua da infância

e da adolescência:

O grupo Marcolino de Barros

O Colégio Estadual Professor Zama Maciel

A infância é um assombro

A adolescência, uma explosão de vida

As serenatas, o “clube da esquina”, as pescarias,

as garotas em flor

O cineclube, o pessoal do teatro, os festivais na praça

Aquela época que tivemos, de efervescência cultural e artística

O grupo musical Versus e nosso “sucesso de público e crítica”: Aviso



(...) no centro do mundo

Tem dinheiro acenando

No meio da vida

Tem um passo mancando

(letra: Wander Porto)



As casas todas onde morei

A casa de fundo da avó Nair

A casa da tia Chiquinha

A casa perto do mato

A casa do pai do amigo

A casa perto da pracinha

(quantas foram, mãe?)

O hotel-pensão, a vila

Até que revoei



Mas volto quando posso, não abandono meus laços



Minha cidade natal, pequena

Alento, prazer e memória

Raiz e chão, poenta vermelha

Do que fui e sou, adulto e criança

A ti, o meu sincero apreço e apego

Levo-te no peito, nos olhos e na mochila

Cidade minha, cidade nossa, Patos de Minas







II BELÔ



Aos amigos belorizontinos





Belô é à noite

Os cheiros

Os bairros, os bares, as belas moças, revoadas de ninfas!

E a serra, a música, o friozinho, a boemia

Belô são amores findos mas lindos

Como nos versos do mestre Drummond:

“as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão”



Belô é a estudantada em algazarra

Nossos festins na rua Timbiras, universitários

Os casórios, o Mercado Municipal, os botecos da esquina, as folias

O hotel São Paulo-Minas, as viagens a trabalho pela prefeitura

As namoradinhas, aquela lourinha de sangue quente e nome russo

A música do James Taylor na discoteca, a multidão apressada

A antes literária rua da Bahia, a subida da Afonso Pena, a Toca da Raposa

O kaol (prato rápido) do Café Palhares, lá no Centro

(o meu, com pernil, faz’ favor)

A comida boa, quente e cheirosa de todo canto



A música; o “rei” Milton Nascimento e sua corte: Beto Guedes, Lô Borges,

Toninho Horta, Wagner Tiso, Túlio Mourão, 14 - Bis, Flávio Venturini

O excelente João Bosco e muitos outros



Preciso ver-te mais Belô, tanto(as) amigos(as) !

É só pisar na Praça Sete ou nos Confins

Estou em Belô - é festa -, fico feliz!









III BRASÍLIA, MINHA ILHA





Aos amigos brasilienses



Nesta ilha de vidro num mar de cerrados: Brasília

Eu gosto é dos grandes espaços abertos e da liberdade

Aqui, posso pintar o cabelo de verde ou roxo,

ninguém liga!

Brasília é cosmopolita, um pouco

De provinciana, nada tem, isso é certeza

Uma cidade experimental, um acampamento, um canteiro de obras, até hoje em construção

num Brasil também se erguendo aos poucos



Terra de oportunidades e possibilidades

Em Brasília existe o caldo de gentes de todas as partes

Mineiros, goianos, nordestinos, nortistas, cariocas e gaúchos

Gente do Mato Grosso, do Acre, estrangeiros de vários países

Uma classe média bastante informada e politizada:

Passamos por invasão militar na universidade, pessoas desapareceram

Ajudamos a jogar ovos no Henry Kissinger, o emissário do Império

Fizemos imensa carreata até a Casa da Dinda, no impeachment

do presidente barão de engenho (Collor)

Participamos da criação de sindicatos fortes nos anos 1980

Sindicatos que depois perderam sua força e rumo

Vimos, com tristeza, tanques e tropas invadirem a Esplanada dos Ministérios

em 26 de novembro de 1986

Eram os tempos finais do militarismo, os últimos urros do monstro





Assim, Brasília já tem história: JK, Jango, Jânio, os movimentos sociais

Brasília já tem alguma história e quem sabe daqui não saia um novo país

Porque de Petesburgo, cidade também inventada no meio do nada

É que nasceu a revolução russa

Existem muitas semelhanças entre Brasília e São Petesburgo:

Cidades modernas em meio ao subdesenvolvimento à volta, ilhas

Brasília, quem sabe, uma Petersburgo do Sul, uma Petrogrado, Juscelinogrado

Não nos dê nos próximos decênios (o Brasil anda a passo de tartaruga)

Uma revolução possível e pacífica:

educação





ATO DE REDENÇÃO EM ANEXO





(Redima-se Brasília. Brasília não é só política e politicagem. Brasília não é só corrupção.

Há gente normal: trabalhadores, funcionários, estudantes, artistas, comerciantes.

A corrupção no Brasil é generalizada; é uma pandemia, uma epidemia nacional. Muitas

vezes, a verba some é na outra ponta, no estado ou no município. Muita gente suja as mãos

e põe a culpa em Brasília. Os políticos que estão em Brasília não são da cidade. Assim,

redima-se, no que tiver direito, Brasília.)







IV UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE







Praia que some de vista, deserta

O céu, um mar azul de doer (ou será verde?)

A água tépida e transparente, coqueiros balouçantes

Ah meu Taiti, minha Bali,

Meu Nordeste brasileiro!

Eu vou é ficar por aqui

Tornar-me biólogo

Estudar a vida sexual das baleias jubarte

Viver de bermudas

Namorar uma caiçara morena, bem índia

O que mais? Passar a vida descalço

E sem esquentar a moleira

Com as misérias, o terrorismo, a corrupção pandêmica,

O Império Americano, a sórdida mídia,

O efeito estufa, essas mazelas




(...)


LUCY IN THE SKY









Eu tinha quinze anos

Em casa, tocava Pink Floyd em um cabo de vassoura:



Home, home again (lar, de novo em casa)
I like to be here (gosto de estar aqui)
When I can (Breathe) ( quando posso) (Respirar)


E a lourinha passava todo dia

Em frente à loja do meu tio Abílio
Run, rabbit run (corra, coelho, corra)

Cocotte, coelhinha sardenta, cabelos longos

Gostava de usar o jeans da moda, bem apertadinho

Vinha da Escola Normal, de uniformezinho, sainha, ela e dezenas de garotas

À hora certa, eu ia à porta para vê-la(s): meio-dia

Enquanto o rádio da loja do tio Abílio tocava:
Lucy in the Sky with Diamonds (Beatles)

Rock and Roll Lullaby e Raindrops Keep Falling on My Head (B.J.Thomas)

Me and Mrs. Jones (Billy Paul)

É inegável: naquela época já havia muita música estrangeira, da boa e da

ruim

Mas o rádio também tocava Belchior, Raul Seixas, Chico Buarque, Caetano Veloso,

Milton Nascimento (os mineiros, modéstia às favas, têm ótimo gosto

musical)

Me lembro da BR-3 e da música do casaco marrom

Que uma moça cantava: Evinha, a irmã de algum dos Golden Boys:



Eu vou voltar aos velhos tempos de mim

Vestir de novo o meu casaco marrom

Tomar a mão da alegria e sair

Bye bye esses sinos Alone!



(Casaco Marrom – Trio Esperança)





Era 1974 e eu, funcionário júnior, trainee, vendia zíperes, botões coloridos,

Elásticos e Linhas Corrente e Drima para as costureiras:

Armarinho Vieira

Ficava na rua General Osório, defronte à Casa Vieira, doutro tio que eu

gostava

O tio Antônio de Deus Vieira, um homem à frente de seu tempo

Um ótimo patrão de seus empregados, amigo

Passeava com as crianças em seu carro-banheira americano: Galaxie

Criou um time de futebol para os funcionários

Pagava participação nos lucros – um humanista!



A coelhinha? Muitos anos depois, eu contei a ela essa história

De que ela enfeitava os meus meios-dias, me encantava

E, oba, ganhei uns beijos de brinde e de indenização





O CLUBE DA ESQUINA







Na rua Marechal Floriano, esquina com Barão do Rio Branco

1974/1975/1976, a gente crescia junto, a turminha

O nosso particular clube da esquina

A gente ia crescendo e virando gente, moços e moças

Nos apoiando uns aos outros e nos salvando

Nós nos salvamos! Das dificuldades de crescer e das sombras

Da Tradição. Sobrevivemos!



As primeiras paqueras

As primeiras festinhas

As primeiras contradanças

A “sangria’ (feita de vinho tinto diluído em água, açúcar e frutas)

A primeira vodca com Fanta, o hi-fi

A primeira cuba libre e as primeiras atrações inocentes

Tudo sob o olhar vigilante dos pais nas frestas das janelas

Sem saber nada do que ocorria no país, a terrível ditadura

A gente se reunia quase todas as noites
Dez, quinze (pré-) adolescentes batendo papo

E cantando Raul Seixas, Fagner, Milton Nascimento, Bread, Supertramp

Elton John, Bee Gees, Rod Stewart, Paul Mc Cartney, Belchior:



Às vezes você me pergunta

Por que é que eu sou tão calado

Não falo de amor quase nada

Nem fico sorrindo a seu lado

(Gita, Raul Seixas)



Sem droga, sem briga, inocentes

Cantando com aquele inglês de cantor de churrascaria: “embromation” (“embromação”)

A gente pouco sabia do idioma, mas cantava com emoção:



I’m a simple man (sou um cara simples)

So I play a simple tune (e canto uma música simples)

‘ Never been so much in love (nunca amei tanto)

And never hurt so bad (e nunca me machuquei tanto)

At the same time (…) ( ao mesmo tempo – tradução livre)



(Simple Man, Grahan Nash)





My sweet Lady Jane (minha doce Lady Jane)

When I see you again ( quando eu te vejo de novo)

You servant am I ( sou seu criado)

And will humbly remain (e humildemente permanecerei assim)

(...) Wedlock is nigh my love (...) (o matrimônio está chegando, meu amor)

Her station, right, my love (sua posição está garantida, meu amor)

I pledge myself to ( me ajoelho pra você)

Lady Jane  (tradução livre)



(Lady Jane, Rolling Stones)



Os inocentes garotos e garotas

O Benjamin Silveira, Beto Castro, Almir (Mirim) Gonçalves, Zecão,

Wilson “Gambá”, Jorginho Chegury, Vilmar Amâncio, Edinho Braga,

A Rosana, Ávila e Sibele, Marisa e Ster,

A Josa, aia e tutora das meninas



Na esquina da rua Marechal Floriano com Barão do Rio Branco

Na mureta (ainda existe?) ou na soleira de loja que foi açougue do sô Olívio,

“venda” e verduraria

Está sentada boa parte do começo de minha adolescência

O nosso querido clube da esquina








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segunda-feira, 18 de março de 2019

Livro Nem te Conto - histórias etílico&psicodélicas (TRECHOS) Carlos Vieira Charles



                            1                                                                        


Lá pelos 1974, em plena ditadura militar, três rapazes estavam fazendo serenatas para as amadas e pretendidas, mais cantorias encomendadas, noite adentro, na pequena e pacata cidade do interior.

Incomodado com o bulício, algum cidadão de bem ligou para a polícia. Saiu o fusquinha oficial, a procurar pelos arruaceiros. Os encontrando numa praça, o policial, vendo o garrafão de vinho Sangue de Boi quase vazio, a garrafa de cachaça pelo meio, e notando o vapor alcoólico que emanava dos rapazes, achou por bem prender o violão, para acabar com a festa. Disse que o instrumento musical poderia ser resgatado no dia seguinte, na delegacia.

Foi quando um dos rapazes, gaiato, perguntou:

–Tem horário de visita para o violão?

Foi preso também.






9



Numa sexta-feira à tardinha, Beto assistiu a um bom filme italiano no centro da cidade. Depois, reencontrou amigos no boteco de sempre. Passado um tempo, voltou para seu apartamento de solteiro, lá pelas onze da noite.

Enquanto tomava uma cerveja, preparava uma omelete na cozinha, quando toca a campainha. (Menu de solteiro: macarrão instantâneo/ pizza/ churrasquinho de gato/sanduíche de fast-food/ omelete).

Voltando à história, toca a campainha, Beto atende e mal disfarça o susto: era uma morena daquelas esculturais, de causar acidente de trânsito. Um metro e setenta, curvas pra todo lado. Um morenismo. Uma morenaça.

Beto pensa: mulher bonita, só de estar perto, já faz bem, já tá bom! Ela olha para dentro do apartamento, estranha, e pergunta:

– Não é aqui o apartamento do Beto?

– Sim.

– Um que toca violão?

– Sim – diz Beto – curioso.

– Mas não é aqui que tem uma festa? – pergunta a morenaça.

– Me dá vinte minutos? Eu chamo todo mundo e faço uma – responde Beto, sorrindo.

A festa era na casa de outro Beto, que tocava violão, no mesmo prédio, em outra entrada.



.

***



16









João e Júlio eram inseparáveis. Toda tardinha, depois do trabalho, seis da tarde, happy hour, os amigos se encontravam e iam tomar umas em botecos variados da cidade. Tinham empregos bem simples, ganhavam pouco e eram obrigados a tomar conhaque dos mais baratos. De 3 “real”. Cerveja, não podiam. Então, sempre tomavam alguns “Presidente” (marca de conhaque popular). E, como sempre andavam e bebiam juntos, logo ganharam o apelido de “Presidente” e “Vice”.



***



17



Bem jovem, ainda estudante, Cláudio tinha um pequeno primeiro emprego, quase um bico, e ajudava nas despesas da casa dos pais. Assim, quase nunca sobrava nada para passear, comprar uma roupa ou gastar na rua. Dinheiro contado.

Quando ia ao barzinho, tomava só uma ou duas cachaças, misturada com uma coca-cola para aliviar o gosto forte. Cachaça com coca, gelo e limão.

O problema é que toda vez que Cláudio ia beber a sua cachaça com coca no barzinho, passava uma jovem amiga “x”, estudante, que se sentava e pedia:

– Posso beber um pouquinho de sua coca-cola?

E bebia quase toda. Cláudio, com cara de tristeza, ficava na cachaça pura, SEM coca.

Anos depois, Cláudio ficou rico. Talvez por isso. Pra poder beber coca.



***

23



Bar e restaurante popular. Fim de semana, dez e meia da manhã. Chega o primeiro cliente, com um jornal para ler. Chega o segundo, com um notebook. Ouve-se um TUM TUM TUM, fortes batidas no subsolo do bar, na cozinha. O primeiro cliente diz para o segundo:

– Ali tem um colchão mole apanhando até confessar que é filé mignon.



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Livro Boletim do Tempo (TRECHOS) Carlos Vieira Charles



ALÍCIO NO PAÍS DOS CAMELÔS



– Pois é. Nos tornamos todos camelôs. Com todo esse desemprego, o Brasil tornou-se uma imensa feira... de bugigangas. Esta será a única via de sobrevivência a multidões de trabalhadores desqualificados, não por culpa própria, é claro. Esses são os anos 1990.

– Não, eu não penso assim. A economia vai muito bem e o país está se modernizando rapidamente. Acho que...

– Olha o chiclete, moço! Quer comprar?

– Não, obrigado. Mas, voltando ao papo, eu acho que o presidente está certo e...

– Moço, quer ler a sorte nas cartas?

– Não, obrigado. Mas você, meu amigo, é muito pessimista. Você é um rebelde com excesso de causas... Vive vendo as coisas pelo lado sombrio. Para com isso! A situação não está assim tão...

– Nosso país tem uma história triste. Basta ver esse século que passou. Com tanto atraso e tanto arcaísmo, a mídia instalou-se antes que a maior parte da população fosse sequer alfabetizada. Resultado: o povo virou macaco de auditório. Agora chega a globalização e o desemprego, num Brasil pouquíssimo industrializado... ou seja, o Brasil é um país atropelado pelos outros. Mais um exemplo? No mundo inteiro, os governos estão perdendo o poder, os Estados estão tornando-se mínimos; aqui, os tecnocratas também o almejam. Mas a que custo social? Vão despejar na rua milhões de funcionários públicos que irão fazer o quê? Vão tornar-se ambulantes, com setecentos mil carrinhos de cachorro-quente. O Brasil, eu repito, tornou-se, uma imensa feira repleta de bobagens eletrônicas. Seria cômico se não fosse trágico. Com a entrada dos estrangeiros, então, estamos nos tornando, como diria o velho Lima Barreto, uma república neocolonial bruzundanga. E estamos conversados. Toda essa modernidade que apregoam, de boca cheia, os políticos, é mentira. O Brasil é um abacaxi de cinco séculos.E o povo, pobre, largado, lascado, mais uma vez sobra no aperto, no espeto. Como dito num filme italiano, o povo tem uma única bandeira: a sua própria pele. O povo só sabe dançar, no carnaval e na vida. O povo é a vítima totalmente indefesa.

– Caramba, que discurso esquerdista! Você é daqueles comunistas remanescentes? É a favor do controle estatal total? Meu amigo, o muro já caiu, a Rússia dançou, que coisa mais antiga... Temos é que nos modernizar e acabou. Temos que... – O doutor quer comprar rede de dormir? Olha a rede! Faço barato!

– Não, obrigado. Que saco esses vendedores! É doce, chiclete, amendoim torrado, bagulhos! Mas o que eu ia dizendo que...

 – Moço, dá uma moedinha pra eu comprar leite pros meus irmãozinhos!

– Não tenho agora, garota. Caramba, o que tem de gente vendendo bagulho e pedindo... Mas eu digo é que o Brasil está no rumo certo. Tem que privatizar mesmo. Tem que cortar os excessos e o governo...

– Olha o chocolate importado! Olha o carrinho coreano!

– Não, obrigado. Porra, assim não dá pra conversar. Vou mandar fazer uma placa com os dizeres: NÃO, OBRIGADO! Assim não dá pra conversar. Fica esse pessoal vendendo porcaria, interrompendo a conversa o tempo inteiro! E é pra todo lado: no estacionamento, na fila de padaria, no cinema... Assim não dá! Mas o que é mesmo que eu ia dizendo? Ah sim, pois é. O Brasil vai muito bem.



PARVO PATETA PINTOR DE PODRIDÕES E PASTICHES



(Um notável pateta monologa para uma plateia sonolenta e alheia; uma plateia de assalariados)

– Hoje eu acordei assalariado e só por isso engordei três quilos! O perfeito imbecil, já o sou. Vejam as minhas roupas de etiqueta, vejam a minha conversa previsível, os meus gostos. Sou um cidadão; portanto, sou uma besta quadrada, uma anta consumidora, um João-vai-com-os-outros, porque não cheguei a optar e desisti. Acompanho todas as marés, e se o mar o quiser, que me atire à areia ou às pedras!
(A plateia dorme com pipocas dentro da boca, apesar de adolescentes fazerem algazarra no fundo do teatro. Um político gordo ronca na terceira fila. Sua baba escorre pelos cantos da boca.)



“entretanto, você caminha / melancólico e vertical / você é a palmeira,

você é o grito / que ninguém ouviu no teatro / e as luzes todas se apagam.”

Carlos Drummond de Andrade



– Plateia! Ele, o assalariado, é a versão pretensamente avançada do antigo escravo e dos servos chicoteados. Os chicotes, hoje, podem ser a laser, mas a dor, baby, é a mesma! O assalariado é o boi no lento matadouro das empresas. Carneiros? Governo de lobos e hienas. Quem disse isso, plateia? Choderlos de Laclos? Quem?

(A plateia acorda, contrariada. Em seguida, volta a dormir, enfiando a cabeça no fundo das poltronas.)

– O notável pateta monologador! Sou mantike e sou manike! (profeta e louco). Aurum nostrum non est aurum vulgui! (nosso ouro não é vulgar). Me ouça ou não, ó plateia inconstante, plateia sem cabeça! Permiti-me a redefloração de vossos tímpanos saturados de berros publicitários e de senhas de venda do capitalismo! Acordai, acordai! Ou então que durmam eternamente no berço esplêndido! Anões, anões! Vós, gigantes, tornados anões e figurantes! Plateia, eu parei meu carro no posto Ipiranga e um bigodudo gritou alguma coisa. Estava um sol danado em nossa pátria. Foi um brado heroico, retumbante, o do bigodudo. Ele disse outras coisas, foi chegando gente, veio um pintor e registrou a cena. Havia portugueses olhando; no fundo, alguns ingleses cochichavam. E o bigodudo continuava: Salve, salve. Novo Mundo!

(O pateta termina este trecho incompreensível de sua fala e ninguém se perguntou que diabos seria aquilo. Ipiranga, bigodudo, pátria amada, idolatrada, salve, salve? O pateta agora descansa um pouco, até de sua própria voz monocórdia e monótona. O pateta “descansa de si mesmo”(Nelson Rodrigues), enquanto descasca uma banana.)

– Plateia, geografia!

(O pateta retorna à sua fala, tendo outra banana nas mãos e uma bola de futebol equilibrada em sua cabeça.)

– Ó Calcutá de misérias, Las Vegas de ambições, ó planeta de boçais que não percebem o esplendor da vida! Eu me envergonho por vocês. Seus valores, ó crianças, são pequenas adaptações aos costumes instituídos na era do Pleistoceno! Seus hábitos são bárbaros, apesar do verniz civilizatório que meteram por cima de sua tosca matéria! A mim não enganam, se não resolveram ainda nem o problema da alimentação! Boçália, boçália! Planeta de boçais destruidores e arrogantes! A tortura, quantas formas? Ditaduras, quantas? Métodos de domesticação, quantos? Amados, tendes quantas formas de prostituição? E crimes ainda não codificados, quantos?

(O pateta berra a plenos pulmões. O cenário é maravilhoso: uma noite tropical iluminada por uma lua cheia e enfeitada por palmeiras que balançam à brisa de suave maresia. A plateia, contudo, dorme. A plateia não ouve o patetear do pateta e não vê a beleza da noite cenográfica. Terminado o trecho de sua fala, o pateta chuta para longe a bola e come a banana que carregava.)

– Escutem Josés Ninguém, escutem Marias conformadas! Maldita Ibéria! Maldita Ibéria que nos entortou as almas! Almas barrocas e torturadas! Latinoibéria!

(Grita o pateta, acordando novamente a plateia. Esta, assustada, lhe grita de volta, três vezes:)

– Será possível? – Será possível? – Será possível?

– Deixe-nos em paz, poeta parco!
– Deixe-nos em paz, poeta parvo!
– Deixe-nos dormir, seu puto pestilento!

(A plateia volta a dormir e o poeta a olha, embevecido.)

– Uma pequena reação, que bom! Então, canto para que durmam. Canto uma canção de ninar. Mais tarde cantarei uma canção de despertar. Quando poderei cantar a canção de viver?

 (O pateta canta uma canção de ninar. O poeta canta uma canção de acordar. Inutilmente, porque a plateia quer o conforto do sono, o abandono da mente, o descanso de seu próprio silêncio; a plateia quer esta pequena morte, desejando que se prolongue ao máximo esse alheamento. A plateia quer o teatro calmo, escuro e protetor. A plateia quer, do teatro,um útero. O pateta deixa que durma o público. Sai de cena. Depois de instantes, volta acompanhado de um violão e uma maravilhosa morena de cabelos tão negros que refletem a azul. Ele se senta em um banquinho, a morena se recosta em suas pernas.)

– “Sozinho no escuro, / qual bicho-do-mato, / sem teogonia, / sem parede nua, / pra se encostar.”

(O poeta recita estes versos de Carlos Drummond de Andrade e olha para sua musa. Ela lhe ergue o belo rosto e o brinda com um sorriso tão doce e tão carregado de meiguice e beleza que o pateta sente todo o seu corpo amornar. Sem pudor, ele fita o rosto da moça e se alegra. A musa toma-lhe a mão e, para dizer do ritmo que ele irá tocar, a deposita sobre o contorno de seu seio esquerdo. O príncipe sente a batida calma do coração da moça. Seu pulsar é o mesmo que o das estrelas acima e de qualquer vida microscópica abaixo. A música que o príncipe poeta pateta dedilha agora ao violão se casa com o ritmo do coração da musa, comungando então com todas as coisas: o mar ao lado, as estrelas acima, o rumor do vento nas palmeiras. Neste instante, o rosto do poeta serena, as rugas se acalmam, sua face se torna rósea e uma sabedoria silenciosa pousa em seus olhos. Momentos depois, o poeta desperta desta rara comunhão. A musa não se mexe, recostada em suas pernas.O pateta ergue os olhos à plateia que dorme, feliz. O cenário continua noturno e eterno.)


– “A cidade dorme, ambição descansa.”

(velha música brasileira)


– A cidade quando dorme é quase pura. (Fala o poeta à sua musa.)

– Mesmo nos antros mais sórdidos, nas esquinas mais sujas. Assassinos, quando dormem, são homens e se igualam. Prostitutas vão dormir e se igualam. Banqueiros se esquecem do mar sujo dos lucros, e se igualam.

 – Viva o socialismo noturno! (diz, brincando, a musa.)

– Viva o socialismo do sonho! (diz a ela o poeta.)

– Viva a democracia verdadeira do silêncio! Viva a igualdade no descanso, viva a fraternidade das horas de inconsciência! Viva os governadores quando dormem!

– Todo homem tem direito à igualdade no sono e no sonho. (iz novamente a moça.)

– Não são necessárias declarações universais nem documentos comprobatórios; esta condição é imanente. Todo homem quando dorme é um santo. Viva a igualdade indiscutível que a noite traz às pessoas. Ao amanhecer, elas ainda são puras; somente após ao meio-dia, somente nessa hora é que elas retornam à sua condição de estupidez! E esta não lhe é definitiva e sim evolutiva porque é superável, esperemos. Coletivismo, ecologia, autoconhecimento; holismo, comunidades, despoluição; utopias que borbulham na cabeça dos humanistas, pensamentos de filósofos, música de músicos, canto de místicos, vozes de homens evoluídos, religião de idealistas quietos em seus cantos. Que a humanidade acorde de seu sono e sonhe acordada a sua nova realidade. Espiritualize- se, no sentido metarreligioso. Além de si, além de seus primeiros socialismos, além de suas superstições rudimentares.

(depois de recitar docemente este texto esperançoso, o poeta se dirige à sua musa)

– Minha dolce musa, vós que sois a encarnação de todas as belezas do mundo, vós que sois uma filha de Gaia, vós que entendeis minhas lamúrias e ladainhas, pateteei agora socialisticamente o meu sonho e volto a patetear minhas patetadas de quixote quixotesco, me calando porque fiz o que desejava, e, pelo som da voz, me personalizo. Se falo, consigo ser um pouco menos covarde, um pouco menos surdo-mudo; um pouco menos robotizado, um pouco menos domesticado, um pouco menos escravo. Assim, consigo menos tristeza nos olhos e mais dança no corpo. Menos culpa na carne, algum riso no rosto. Porque, Dulcinéia, há também no mundo tanta beleza e na vida tanta surpresa que os sonhos nunca se findarão; e como existem estes méis haverá também as flores. Detrás das revoluções traídas e dos fracassos é sempre alimentado o sonho e a Ideia. O sonho não acabou, John. O sonho sobrevive ao sonhador. O sonho, repito, sobrevive ao sonhador.

(A plateia acorda e não entende o silêncio atual do palco. Vendo a moça, a plateia inveja o poeta e se enraivece, o provocando)

– Poeta paspalho, pintor de podridões e pastiches, pateta piegas, professor de mau português, parta, pare, passe. Podes? Pense. Parta. Paris. Pique-se, Pã, metido a pai. Palhaço metido a rei. Quer palmas, ó papa? Jogue os seus papiros no pântano. O seu paraíso? Perdido, seu pavão. Que se tornem pedras os seus pés. Sem pena! Seu perfume, peregrino, as pérolas porcas que nos atira são falsas. Bata as pernas, logo! Torne-se pó! Seu poder é porco, falso príncipe. Poesia sua, imundície pegajosa. Parta com seu palavrório pedante e deixe-nos dormir em paz!



CATILINAS



– Ok, o baronete de engenho (D. Fernando I) lascou com os nossos salários e as pessoas não podem mais sair de suas casas. Os bulevares (?) estão vazios, os bares estão às moscas. A cidade não tem dinheiro, por isso perde as cores e cheiros. A cidade está quieta e se emburrece diante de aparelhos de tv. A cidade sem salários. O baronete louco foi afastado do poder; contudo, levou tudo de arrasto (sua casaca recheada de dólares e ouro).

– Cidade dos corruptos, a mágica das verbas desviadas... E os barnabés sem salário, os barnabés sem nada. Aos domingos, eles compram coca-cola na padaria. Bermudas e sandálias Rider falsificadas.

– Vamos no shopping?

– Ou que tal uma cuba-libre na rodoviária?

– O dinheiro dá?

– Peguei algum na financeira, a juros exorbitantes.

– Não acabaram os juros?

 – Pergunte aos agiotas...

– Que agiotas? Os imobiliários ou os que negociam carros? – Pergunte a qualquer um deles, pombas...

– Quosque tandem, Catilinas? (“até quando, Catilinas, abusareis de nossa paciência?” – Cícero, o romano).

– O tempora. O mores. Ó tempos, ó costumes...

– O baronete de engenho arrasou com a cidade, o município, o estado, a nação, a pátria... Cinco séculos e o saque continua, impávido colosso. Confúcio, dai-me paciência. Gandhi, dai-me
paciência, porque ando fodido e desesperançado.

Sic vos non vobis mellificatis apes. Assim, vós, mas não para vós, fabricais o mel, abelhas...

– Virgílio.

– "Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro".

– Virgílio? Padre Antônio Vieira.

– Sejamos sensatos, mudou o governo, mudaram os ministros, é outro o Congresso!

– O velho às vezes se mascara de novo que é para o povo ser novamente enganado.

– Viva a democracia da miséria!

– Convenhamos, é melhor que as ditaduras da miséria.

 – Mas o voto não representa o eleitor

mas a sua ignorância
a sua ignorância
a sua santa ignorância

– A sua santa ignorância, culpa das elites predatórias e incultas.

– A democracia é a melhor das formas de governo, ou seja, a menos pior.

– Pra você ver aonde anda a raça. A democracia é uma farsa milionária.

– Mas as coisas vão mudando, things change! No Congresso, fora os empresários, fora os latifundiários, já tem uma pequena quantidade de sujeitos bem-intencionados!

– Pulgas no corpo do mamute antediluviano... Ah ah,o mamute dos velhos ricos, o mamute dos gordos salafrários, o mamute dos baixinhos do Nordeste.

– Do sul, também!

– Sim, ladrões há, em todas as geoeconômicas. O mundo é dos cínicos.

– Plantados no dorso do mamute republicano.

– Como anda a censura? Já voltou?

– Acho que não, por isso estou sapecando o meu xingatório!

– Manera, frufru, manera!

– Não manero não, porque represento o desabafo de milhões, milhões de atormentados. Não manero, quer ver? Porra, merda, xixi, boceta, com mil cancros gotejantes, que país!

– O encanador nos rouba. O agente imobiliário nos imola.

O advogado nos aporrinha, o chefe nos torra!

– Avante, foncionários e cidadões!

– Funcionários e cidadãos!

– Um dia, isso muda!

– Dirão a seus filhos os nossos tataranetos...

– Somente um povo instruído e civilmente organizado, um povo altivo e com identidade, somente assim se estancará a pilhagem.

– Os pilhadores não deixam que o povo aprenda.

– Esse o dilema, o ovo, o x, o eureka. Como retirar do lodo o povo?

– Mundão velho, atrasado!

– E magnífico. Não maldiga a vida, maldiga a raça humana primitiva.

– Isso muda, um dia?

– Um dia isso muda, dirão a seus filhos os nossos tataranetos!

– As coisas mudam, devagarinho.

– A História é um bicho-preguiça. Você viu quantos anos foram necessários para a queda do muro de Berlim?

– Tanto muro falta para ser derrubado! Quantas mentiras!

– Haja pedreiros...

– Haja jovens que neguem o repetir-se do velho!

– Haja jovens que não se cooptem em troca de um cargo de confiança.

– “Não diga à mamãe que entrei para a política. Ela ainda pensa que eu toco piano naquele puteiro”...

 – Os burros de carga, os manés covardes...

– Manera, no fundo todo mundo é vítima. De sua era, de sua época e de seu estágio.

– Cadê o Colombo? Precisamos urgentemente da descoberta de um Novo Mundo.

– Ele já existe, só que em estado embrionário.

 – Dirão a seus filhos os nossos, etc.

– Não é assim, olhe bem, este novo mundo já existe.

– Pra encerrar, palavras de um neurolingüista: Programe-se, você chega lá! Insista, não desista! Se o destino te der um limão, faça uma boa caipirinha, etc. Se o destino subdesenvolvido de um país de economia acorrentada aos estrangeiros te der um limão Mc Donald’s, faça uma limonada for export, mané.

– Ou Zé. Zé brasileiro. Os fudido. Nóis.



NO TABULEIRO DA MINHA RUA


no tabuleiro da minha rua, tem...

pivete, tem puta, tem

tem briga, tem choro, tem

tem gente no lixo, tem

político na sauna, tem

fanática rezando, tem

tem gangue ajuntada, tem

tem gente como ninguém...

isso aqui, êô, é um pouquinho de brasil, iaiá...






MOVIOLA



PM



camelô



pivete



puta



pé-inchado



mendigo



– puta que pariu!

PM

camelô

pivete

– bala perdida matou

bala perdida acertou!

quem?

PM?

camelô?

pivete?

puta?

pé-inchado?

mendigo?

– puta que pariu!


PM

camelô

pivete

puta

pé-inchado

mendigo






EU FIZ, EU TENHO, EU COMPREI



Do nascimento à tumba, qual é o bicho que

passa toda a vida se auto-afirmando?

O bicho homem masculino. Haja otorrino.



CARAMBA



Passamos toda a década de 1990 empobrecendo... dez anos, como se estivéssemos viajando

em estrada cada vez pior e sem acostamentos...



LA NAVE VA



tem gente de carne e osso

tem gente que é só a roupa

tem gente que é só uma gravata

tem gente seca, áspera, espinhosa

tem gente que não dá pra ver,

porque sempre está detrás de alguma coisa:

– você já viu o presidente?

tem gente que é só pose

tem gente que é só boca

gente-nariz,

gente que é só uma orelha dentro de um automóvel

tem gente que é inteira

tem gente que é osso e carne

tem gente que é inteligência

tem gente que é maravilhosa

tem gente de todo gen

tem gente zen

tem gente que se esconde e se frequenta no escondido

tem gente que se esgueira, gente inseta

tem gente que vive no século XVI

tem gente há muito no século XXI

(como o amigo que produz verduras sem pressa nem veneno; o amigo que produz alimentos sem o vício do lucro fácil e rápido; o alimento em si, puro, fresco e bem-tratado; o outro irmão inunda de ideias as ruas; o outro canta, o outro atua)



ENTREVISTAS IMAGINÁRIAS



I – O PORTEIRO

Estados Unidos, o povo é tudo louro, forte. Muito ricos, né?A gente vê na televisão. Tem o cinema, como é que é? Aquele nome de cigarro. Roliúde, isso. Os americanos são um povo famoso, rico, gordo, tudo mora em mansão. Eu vi no cinema. Eles gostam de quebrar os carros, botar fogo, todo filme tem. Também tem muita briga, tiro, violência. Eu não entendo, eles são tão ricos e ficam brigando, pra quê?

Pois é. Estados Unidos. Eu sei que é longe, muito longe. É bem pra lá do Ceará, do oceano. É os países desenvolvidos, não é? Eu vi no jornal. Tudo louro, o povo, né? A gente vê nos filmes.



II – O ASCENSORISTA

O pessoal fala que é público, que é do povo; que Brasília é nossa e coisa e tal, mas é tudo mentira. Se Brasília fosse minha eu vendia tudo e ia embora. Não é minha coisa nenhuma.

O prédio é público mas não te deixam entrar. As ruas são públicas mas eu não tenho carro pra andar nelas. Eu tenho é que andar à pé, na grama. Eu tenho é que atravessar correndo a rua. Se eu não fizer isso, os carros me atropelam. Eu tenho é que enfrentar a lama e a poeira. Na rua, nem banheiro tem. A gente tem de se aliviar é atrás dos pontos de ônibus, nas árvores. Esse negócio de público é conversa fiada. Tudo tem dono, até o governo. Brasília é só o meu ganha-pão. Não é minha coisa nenhuma, eu moro é bem longe dela. Duas horas de ônibus, a distância. Todo dia, eu tenho que viajar duas horas de coletivo, dormindo e batendo a cabeça no vidro. Nossa cidade, uma pinoia.




III - O CONVERTIDO

O homem, o pastor, ele fala bonito. Eu não entendo tudo, mas é bonito. Ele fala com força, fica vermelho, deve ser importante que nem os políticos. Ele fala do paraíso, com todo mundo rico, tomando coca-cola na beira da piscina, já pensou? Ele pede donativo, tem muitos; tem o semanal, o mensal, tem os especiais. Eu dou. Já pensou ficar rico que nem o sujeito que ganha na loteria? O pastor promete. Eu volto pra casa só pensando na piscina. Churrasqueira, um carrão desses importados, já pensou?



IV - O BÊBADO

Por que eu bebo? Pra tudo ficar cor-de-rosa. Tudo fica lindo, as pessoas tornam-se interessantes, as mulheres tornam-se mais maravilhosas ainda, o dia fica agradável, tudo sorri. Quando eu bebo tudo fica bem. Tudo se alegra, não há misérias. Então, é isso:

                                          Eu bebo pra consertar o mundo.

(...)




RELATÓRIO



Aí, o ET mandou um relatório para a nave-mãe, que estava estacionada no céu com o disfarçado aspecto de uma enorme e disforme nuvem branca:

“Os terráqueos ainda são tão atrasados que vivem metidos em guerras fratricidas. Ainda escravizam uns aos outros e mal tateiam as tecnologias da luz.Conhecem pouquíssimos raios e utilizam combustíveis fósseis e motores à explosão !!! (continua)



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